Em meados da década de 50, a cidade de Usakos, localizada no centro da Namíbia, passava por grandes transformações de ordem social e política. Sob o domínio colonial sul-africano, a imposição das leis discriminatórias do apartheid levou à deslocação forçada da população africana para uma nova área residencial e racialmente segregada. A cidade, tal como existia, foi destruída para dar lugar a um projeto colonial de povoamento e de supremacia branca. As ruínas físicas e as cicatrizes sociais produzidas por este processo podem ser observadas ainda em nossos dias. Seria um equívoco, no entanto, assumir que os residentes desta zona tenham sido vítimas silenciosas – e silenciadas – desta história social e política de despossessão e discriminação. Suas memórias e fotografias pessoais oferecem um testemunho da capacidade de indivíduos e grupos de resistir a circunstâncias, por vezes violentas, e reagir a elas através de variadas estratégias de mobilização, incluindo a produção e coleção de artefactos culturais, tais como fotografias.

A experiência de Usakos não é excecional. Por toda a África Austral, o colonialismo e o apartheid produziram profundas transformações, passando por deslocações forçadas e desapropriação de populações, até a destruição de espaços físicos e o saque de vidas privadas. Como historiadores e antropólogos têm-se preocupado em enfatizar, as histórias coloniais e de libertação não são meros registos de um passado terminado de vitimização. Ao contrário, o colonialismo, a guerra e a violência do racismo de estado produziram ruínas, tanto físicas quanto imateriais, que permanecem presentes e constitutivas do período pós-colonial. Carcaças de navios ou autocarros, prédios abandonados, ou ainda uma paisagem arruinada, são todos testemunho de um passado de conflito e de luta, que se mantém presente em suas manifestações materiais, mas também em recordações e imagens.

Imagens do passado, organizadas e indexadas nos arquivos fotográficos, não são meramente figuras evocativas ou traços documentais de uma memória longínqua, inerte, que se quer resgatar. Enquanto objeto, as fotografias estão sujeitas a processos de reprodução publicitária ou editorial, de renegociação do seu significado pelas mãos de artistas e curadores, e de renovada circulação por meio de exibições e instalações, museus e catálogos. Elas também nos ajudam a melhor perceber o complexo jogo de ruturas e continuidades entre o passado e o presente, entre o colonialismo, a libertação e o “pós”. Ao lado das ruínas e para além delas, as fotografias nos permitem aceder a uma experiência política e social ainda viva, pulsante. Objetos e imaginários, elas são, em si mesmas, vestígios de um passado e de uma memória em constante transformação.

Tendo estas considerações em mente, o evento “Oficina de História Visual: Fotografia e Memória para Além de Ruínas” tem como objetivo principal promover um debate entre académicos, arquivistas, fotógrafos e curadores sobre o papel da fotografia e outros meios visuais na escrita da história e na produção da memória coletiva em Moçambique e outros países da região. A história académica, como também a antropologia e as demais ciências sociais, são ainda disciplinas de base textual, ou “feitas de palavras”, para parafrasear a antropóloga Margaret Mead. Entre os historiadores, relativamente poucos fazem uso consistente dos arquivos fotográficos, ou utilizam fotografias para além de sua função documental. Neste evento, pretendemos problematizar tanto o papel das imagens como documento histórico quanto a sua função memorialista, expressiva de vidas individuais e de experiências coletivas, e mediadoras de uma política de afetos.

Em Moçambique, este debate assume uma importância especial tendo em vista a existência no país de uma tradição fotográfica ímpar, insubmissa e urbana, no interior da prática do jornalismo colonial, mas também como arma de luta, durante os anos da Guerra de Libertação. Estes contextos já produziram obras e autores excecionais, tais como Ricardo Rangel, Kok Nam e Moira Forjaz, para além de fotógrafos a trabalhar em prol de um coletivo de luta, como José Soares, Daniel Maquinasse, Simão Matias, Artur Torohate e Carlos Jambo. Uma nova geração de autores definitivamente internacionalizou a fotografia moçambicana, levando-a para lá do continente e produzindo intervenções de vulto no campo das artes plásticas e visuais, com Mauro Pinto, Mário Macilau, Filipe Branquinho e Eurídice Kala, entre outros. Para além desta dimensão produtora e criativa, no país encontram-se importantes coleções fotográficas, tanto no Arquivo Histórico de Moçambique quanto no Centro de Formação e Documentação Fotográfica, entre outras instituições e arquivos privados.

Tendo em mente estas questões, convidamos historiadores, antropólogos, fotógrafos, artistas, curadores e profissionais de áreas afins a submeter propostas de comunicação de no máximo 300 palavras, até o dia 12 de Junho. Os autores serão contactados em 19 de Junho. As propostas poderão responder a um ou vários dos seguintes temas:

  • Metodologia: abordagens e métodos de utilização de fotografias e outros meios visuais na pesquisa, escrita, publicações em história e ciências sociais;
  • Instituições: o papel de instituições e arquivos fotográficos na organização, indexação, preservação e apresentação pública de imagens;
  • Autores: a biografia e trajetória profissional de fotógrafos, realizadores ou artistas visuais, e seu papel para a construção da história e da memória;
  • História: a fotografia enquanto documento e artefacto histórico;
  • Memória: a fotografia como expressão memorialista, como objeto e artefacto produtor de memórias individuais e coletivas;
  • Circulação: produção e circulação de imagens e seu papel na formação de imaginários, histórias e memórias;
  • Espaços: a fotografia na imaginação e construção do espaço físico, urbano ou natural, em processo de transformação ou “ruinação”;
  • Agência: produção de imagens enquanto agência histórica ou forma de contestação social e política;
  • Movimento: relações entre fotografia e imagens em movimento (cinema, audiovisual, etc.);
  • Coleção: fotografias e práticas de assemblagem, construção de arquivos, álbum ou coleções;

Resumos ou questões devem ser enviadas para: caio.simoes@graduateinstitute.ch